Resolvi fazer o teste das ruas e levar para o carro duas coletâneas dos Fab Four, cada uma com dois CDs (refiro-me àquelas com as fotos de capa iguais, uma de embalagem vermelha e outra azul). Só clássicos reunidos: da fase iê-iê-iê às viagens indianas, os disquinhos percorrem tudo do bom e do melhor da maior banda de todos os tempos. "Chance de erro", pensei, "zero!". Só que na hora a coisa não funcionou. Eu ali, no volante, preocupado com radares e ultrapassagens, ouvindo as músicas como se elas estivessem abafadas, em volume baixo (embora estivessem em alto e bom som). Não havia peso. O primeiro CD não durou nem 10 minutos rodando no CD player e voltou direto para caixa pelas mãos da minha mulher, que tratou de sintonizar o rádio numa estação bem popular. Não lembro se era pagode ou Beyoncé que tocava.

Cheguei em Angra, mas continuei encucado com aquele inesperado engulho que Strawberry Fields Forever provocou-me dentro do automóvel. "Seria eu um reles beatlemaníaco fake?", me veio à mente tal provocação. Hoje, quatro dias depois, vi que o meu gosto pelos Beatles permanece aquecido, e minha atração pelas inúmeras boas canções idem. O problema não estava no som, mas no ambiente. Vi ali que The Beatles, para mim, não pode servir nunca de apetrecho para momentos prosaico-entediantes como dirigir um carro numa viagem de fim de semana. Aquilo é música clássica, ora essa! Merece todo um ritual de apreciação e devoção, tal qual é conferido às peças de Bach e Vivaldi numa sala de concertos.
A relação de reverência perante a obra criada por Lennon & McCartney, Harrison e Star se aflorou de forma profunda e definitiva depois que adquiri, no ano passado, a caixa remasterizada com toda a obra do quarteto. Era como se um mosaico desconhecido se abrisse sob os meus ouvidos, ampliando em muitas potências as percepções da música produzida por rapazes ingleses absolutamente geniais nas suas diferenças de estilo – o que congrega disparidades em conceitos musicais, filosóficos, poéticos e políticos. Conhecia muito pouco deles, e passei a conhecer menos ainda após a compra da coleção. E foi justamente esse encontro com a minha ignorância que me fez criar um ritual: esperar um momento de tranquilidade em casa, sem agitações ou atropelos, para só então abrir a urna sagrada e me debruçar sobre tão extenso e intenso universo sonoro. Algo que num bom home theater tem o seu valor redobrado.
Desta forma, cadenciada, serena, mas atenta às variações de acordes e harmonias, venho entrando aos poucos no gigantesco mundo músico-cultural dos Beatles. Quando coloquei às compilações rubra e celeste (ambas não remasterizadas, o que faz uma diferença...) no aparelho de som do carro, era como se esse encanto respeitoso e prazeroso, no qual ainda me encontro plenamente envolvido, se quebrasse. Temo que, após a aquisição da mega-caixa de CDs (são 16 mais um DVD), eu tenha ficado refém de um maneirismo meio rococó, algo com o um TOC do bem. Não sei se chegarei aos limites do radicalismo afeito aos mais puritanos, mas sei que os clássicos têm que ser respeitados. Após aquele bizarro estranhamento ocorrido no meu carro, percebi que não dá mais para ouvir Something e buzinar para uma Kombi ao mesmo tempo. Cada um na sua.