quinta-feira, 31 de julho de 2014

Hermes e Renato e o gênio Fausto Fanti


A geração laudatória dos stand ups feitos pela coxice conservadora para a classe-média-sapatênis talvez jamais entenda o ponto ótimo da genialidade mambembe num humor como o de Hermes e Renato.

A linha tosca do escracho canalha é a mesma dos primeiros anos de Os Trapalhões – coisa que muitos tentaram, mas pouquíssimos conseguiram captar. HeR emulou esse espírito para fazer algo novo para a época (final dos '90 e boa parte dos '00), com maior grau de anarquia e liberdade.

Despretensiosamente, fizeram história no humor brasileiro, de verdade, influenciando inclusive muitos dos que surfam por aí sem apresentar a metade do talento dos caras.

A patrulha politicamente correta e hipócrita do Facebook talvez não consiga sacar a dose cavalar de ironia e deboche contida nas paródias hiperbólicas e nos personagens mal acabados de HeR.

Um dos muitos registros geniais da trupe no YouTube (veja aqui) mostra o sarcasmo com as estrelas da stand up comedy – cuja maioria pensa o humor e o mundo de forma tão ou mais quadrada que qualquer velha-guarda da Praça É Nossa. Para HeR era um prato cheio ver péla-sacos dando sopa para piadas.

Mas fica a dúvida: quem vai se lembrar do monstro criativo que foi Fausto Fanti, falecido neste infeliz 30 de julho de 2014, daqui a 10 ou a 15 anos? "Foda-se, o Renato era foda!", diria Hermes, trabalhando o seu vocabulário refinado. E era foda mesmo.

Neste mundo blasé e cheio de falsas verdades, esse maluco aí fazer uma falta absurda.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

O fim de Tóis

O fim de Tóis
por Joaquim Ferreira dos Santos*

Os guerreiros de Tóis julgavam-se predestinados pelo sangue dos antepassados

É pau, é pedra, é o fim do caminho da Civilização Tóis, aquela que os guerreiros do condado de Comary inventaram para dominar o planeta futebol e para todo o sempre ser invencível. Ela exigia de seus súditos o cumprimento em que a mão direita fazia o poste enquanto o antebraço esquerdo servia de travessão, formando o T da palavra mágica. “Pelos poderes de Tóis”, gritavam no meio das rodinhas antes das batalhas — e se julgavam mais motivados.

Ninguém sabia onde queria chegar aquela confraria de homens adolescentes, sempre caminhando em fila indiana, as mãos nas costas do guerreiro que seguia na frente. O mundo adulto ria, mas eles vinham de uma civilização na floresta onde o importante era ser fofo. Foi assim que se conheceram no pátio escolar, meninos com alegria nas pernas, e assim caminhariam, uma chuteira de cada cor, a barra da cueca à mostra. Diziam-se uma família.

Os guerreiros de Tóis julgavam-se predestinados pelo sangue vitorioso de seus antepassados e com poderes suficientes para viver isolados na nova civilização de orgulho que fundaram. João Gilberto sussurrou e criou a bossa nova. D. Pedro inventou um país com o “Independência ou morte”. Agora, os canarinhos tropicais fundaram Tóis, abaixo da fortaleza do Dedo de Deus. A rocha energizava seus pés, eles acreditavam, ajoelhados contritos no meio do campo.

Durante um mês, estes 23 soldados furaram o nevoeiro da serra onde se aquartelavam e, como se fossem entidades divinas surgindo em meio às brumas de Avalon, desciam à várzea para enfrentar os fariseus que ousavam desafiá-los, eles, os autoproclamados reis eternos do futebol mundial. Sentiam-se semideuses, falavam da magia do bigode grosso e da união do grupo. Eram os valores do mundo Tóis. Zero de conversa sobre futebol, pois já de tudo sabiam.

Os guerreiros de Tóis eram os mais tatuados das guerras, todos rabiscados com a miríade de possibilidades inventadas para se imprimir qualquer maluquice na pele de um ser humano. Julgavam que isso seria tática terrível para assustar outras tribos. Pintavam-se de caveiras, dragões, morcegos e hieróglifos. Um desses guerreiros, além da cabeleira em volutas como a Hidra de Lerna, escreveu no braço “Não sou dono do mundo, mas sou filho do dono” — e supunha agora carregar ali a arma mortal de um para-choque de FNM. Morreria mais adiante, atropelado por um jogador alemão.

Antes das pugnas, os meninos de Tóis faziam questão de cantar inteiro o hino de seu condado, num impressionante festival de cenhos franzidos, gargantas arreganhadas e outros exageros da espécie. Seus antepassados, vencedores em cinco torneios, nunca souberam uma frase do tal hino, complicadíssimo. A encenação do canto a capela não tinha nada a ver com o jogo, não marcava gols e deixava os guerreiros emocionalmente exauridos. De onde estavam, no entanto, podiam ouvir o locutor dizer: “Estamos todos arrepiados”. Achavam por isso que estavam com a mão na taça.

Os guerreiros de Tóis chegaram a levar para o campo de batalha a túnica de um soldado ausente, ferido num combate anterior, numa tentativa mediúnica de incorporar as forças dele aos sobreviventes. Achavam possível utilizar a túnica de pano como arma de guerra. Vertiam lágrimas sob qualquer pretexto. Chorava mãe, chorava pai, chorava todo mundo. O mais velho conversava com uma imagem de Nossa Senhora de Caravaggio.

Definitivamente, o ar rarefeito da montanha onde viviam isolados começava a lhes fazer mal. Gol, só de canela. A qualquer contato com o próximo, caíam ao chão, contorcendo-se em dores invisíveis ao mais detalhista dos raios x.

As ordens com que administravam os combates vinham de um velho pajé, gordo de tanto anunciar lasanha na TV. Sua tática era sempre a mesma: “Atacar com motivação, defender com autoajuda”. Ele agora tinha como truque principal a capacidade de se transformar em sósias e espalhar a confusão. Ninguém sabia afirmar com certeza quem era quem, mas diante de algum comentário mais lúcido costumava-se creditar as palavras ao sósia. Na Civilização Tóis todo mundo achou a multiplicação do técnico como uma versão moderna da multiplicação dos pães, o sinal metafísico de que a guerra, ao findar do sétimo passo, estaria ganha.

Os guerreiros de Tóis se achavam acima do bem, do mal e também por cima da carne-seca, o alimento da infância que agora havia sido trocado pelas marmitas mandadas trazer da Espanha, do novo restaurante do chef Ferran Adrià. Alguns pintavam o cabelo todo dia, mas nunca acertavam o corte. A guerra do futebol passou a ser apenas um detalhe, algo transmitido no telão onde avaliavam como lhes ia a beleza.

Não treinavam. Tinham a força, a espada de Grayskull, o grito de Shazan, o apito do japonês, o licor de jurubeba e o pó de pirlimpimpim. Na hora agá, resolveriam. Tóis era a reunião de todos os poderes mais aqueles que os marmanjos adolescentes tinham visto nos videogames da caserna na serra — e, dedicados a se curtirem e se compartilharem nas redes sociais, nem perceberam o bicho vindo pelo meio de campo desocupado. Foram sete dentadas na vaidade, na preguiça, na ignorância e nos pescoços onde estava tatuado “Tudo passa”.

Nada passa, tudo fica — e fez-se o apagão eterno em Comary.

Nunca mais Tóis.

*Publicado em O Globo no dia 14/07/2014 (extraído de http://oglobo.globo.com/cultura/o-fim-de-tois-13247090)

quarta-feira, 9 de julho de 2014

A mãe de todas as tragédias para o futebol brasileiro


A ficha ainda não caiu totalmente. Como diz o clichê: será um processo longo e doloroso. Mas esse dia seguinte está sendo bem duro. Nessas horas em que o cenário de terra arrasada em ruas, esquinas e praças de norte a sul do país nos transforma quase em zumbis de "Walking Dead" por algum tempo – dias, meses? –, o sentimento coletivo dominante pode ser resumido em algo como MAS O QUE DIABOS FOI AQUELA DESGRAÇA, GENTE?

Não dá pra responder essa pergunta hoje, nem amanhã, talvez nem nos próximos sessenta anos. Não há software capaz de absorver o impacto de um asteroide como o que colidiu ontem no estádio do Mineirão e projetar no longo prazo seus efeitos sobre uma sociedade complexa e intrincada como a brasileira, cuja imagem para o mundo é calcada muito em cima dos êxitos dentro de campo. Não há vidente com tamanha capacidade de antevisão capaz de dizer, hoje, o que será do futebol brasileiro e do país do futebol (sic) depois de ontem, a partir de hoje.

Foi 7 a 1, amigo. SETE a um. Em casa. Numa Copa do Mundo. Numa semifinal de Copa do Mundo. Foram quatro gols em seis minutos. Acredito que nem os reservas do Goytacaz disputando a Série B do Campeonato Carioca se apresentariam com tamanha letargia a ponto de tomar quatro gols em seis minutos. Nunca vi, em cerca de 30 anos acompanhando apaixonadamente futebol, uma derrota como a de ontem. Acho que ninguém nunca viu nada como ontem em se tratando do maior esporte do mundo. Foi um tsunami de estragos cataclísmicos.

Os jornais, cujas capas deste amargurado day after já se apresentam como históricas, utilizam de todo o cartel possível de termos para desenhar o tamanho da porrada sideral: vergonha, vexame, humilhação, trauma, indignação, dor, revolta, frustração, irritação, pena, desilusão, fracasso, fiasco, pesadelo... O Houaiss pode ajudar a quem quiser com mais e mais sinônimos. E todos eles, juntos, parecem insuficientes para dimensionar a maior derrota da história do futebol brasileiro – talvez mundial, pelo menos em termos de magnitude global.

Questões táticas são fundamentais em qualquer abordagem sobre este Brasil 1 x 7 Alemanha, embora não encerrem o assunto. Vimos um bando alheio contra um time excelente em uma não partida. Jogadores fora de posição, perdidos enquanto conjunto, totalmente desarticulados, fisicamente frágeis e tecnicamente incapazes. Sim, foi tudo isso ao mesmo tempo, mas foi muito mais do que apenas isso. Porque uma derrota de sete a um entre dois gigantes numa decisão em Copa do Mundo traz em si o imponderável, aquilo que não podemos mensurar em números nem visualizar em esquemas de jogo.

Dito isso, a César o que é de César: o técnico Luiz Felipe Scolari ficará marcado como o mentor de um dos piores times que já envergaram a camisa amarela da Seleção Brasileira de Futebol. Não obstante sua insistência na convocação e escalação de jogadores que há muito não produzem em seus clubes, Felipão mostrou-se incapaz de armar uma equipe minimamente competitiva frente a adversários medianos no cenário internacional – caso de Chile, Croácia e México. Não vimos sequer um esboço do que poderia e deveria ser um Brasil disputando uma Copa em casa. Dependentes todo o tempo do gênio novato Neymar e da dupla de zaga David Luiz-Thiago Silva, nos revelamos limitados para uma competição de alto nível.

Noutra via, ficou claro a desatualização do futebol pentacampeão mundial se comparado ao de dezenas de outros centros – e não há vitrine mais apropriada para exibição do que se joga hoje no mundo que uma Copa. A impressão que todos os brasileiros tiveram ontem ao final do massacre é que, para além de um time melhor, com jogadores melhores, a Alemanha pratica algo anos-luz à frente do que o Brasil pode apresentar. E dá calafrios pensar que o modelo de jogo é a ponta de um imenso iceberg que envolve a busca por talentos, a criação de condições para o desenvolvimento dos atletas, um mercado pujante e clubes fortes, tudo estruturado numa política objetiva da confederação nacional. Estamos alijados desse mundo.

Foram muitos os que imaginavam a possibilidade da repetição do Maracanazo de 64 anos atrás como o mais terrível dos cenários em caso de uma nova decisão. Na prática, o Brasil – ironia dura de se engolir – sequer pisou no gramado do mais famoso estádio brasileiro durante a sua segunda Copa em casa, mas mesmo assim chegou ao ápice em termos de desfecho trágico. Porque nem no mais pessimista dos cenários, nem nas projeções mais sombrias, houve espaço para a possibilidade de uma eliminação por 7 x 1, independentemente do adversário e das dificuldades. A realidade se revelou mais surrealista e amarga que qualquer praga de black bloc.

Todos os erros do time, todos os vícios da comissão técnica, todas as falhas estruturais do futebol brasileiro, todo o check list de problemas que culminaram na tragédia do Mineirão serão alvo do escrutínio público de analistas esportivos, sociólogos, historiadores e comentaristas de redes sociais por muitas décadas. Haverá tempo de sobra, entre uma volta por cima e outra, para tratar a fundo do nosso 11 de setembro moral. Fato é que a Seleção Brasileira de Futebol, o time da camisa das cinco estrelas, sai menor do que entrou nesta excepcional "Copa das Copas" – que para nós será sempre a "Copa dos 7 a 1".

Na impossibilidade de voltar pra casa, fica a necessidade de reconstruir o nosso quintal a partir dos escombros que sobraram do fatídico 8 de julho de 2014. Não será um trabalho fácil, tampouco rápido. Mas se trata de um arregaçar de mangas inescapável. É preciso, de hoje em diante e em todos os sentidos, recriar o futebol brasileiro.