quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Um dia estranhamente tranquilo


Hoje acordei num dia estranhamente tranquilo, bonito, azulado. Um dia que em nada lembra o cenário de terror de ontem, no qual jornalistas, policiais e transeuntes eram alvejados em linhas de tiros por traficantes entocados em algumas favelas da cidade.

Imagens exibidas ontem pela Globonews mostraram repórteres, PMs e motoristas se protegendo de rajadas ininterruptas, sendo que alguns não conseguiram a tempo e acabaram feridos pelos estilhaços dos projéteis. Isso em Vicente de Carvalho. No Engenho de Dentro, outro subúrbio, dois seguranças do presidente da Cedae foram assassinados em uma emboscada de possíveis assaltantes, que não roubaram o carro que servia ao executivo. Outras cenas de violência explícita aconteceram na cidade, incluindo um sequestro de ônibus.

A pessoa que lê essas mal traçadas linhas neste momento deve se perguntar: "Qual a estranheza disso tudo, se afinal você está falando de violência e Rio de Janeiro, dois termos quase que sinônimos?". O que me intriga nisso tudo é a forma absolutamente solene como o jornal O Globo ignorou os fatos citados na sua edição de hoje. Na verdade, pequenas reportagens no meio do caderno Rio abordaram en passant os ocorridos, como se se tratassem de uma batida qualquer que atrapalhou o trânsito na Lagoa ou de uma obra inconveniente da prefeitura na Tijuca. Fatos quaisquer.

O Globo, é bom lembrar, criou há alguns anos uma série permanente para as tragédias da violência pública carioca, intitulada "A Guerra do Rio". "A Guerra do Rio" serve para designar assaltos seguidos de morte, guerras entre policiais e traficantes, guerras entre traficantes e traficantes, ações de criminosos nas ruas, mortes com balas perdidas e tudo mais que cabe no espectro da criminalidade urbana de uma cidade como o Rio de Janeiro.

Ontem, depois de assistir estarrecido às cenas pela TV, pensei: "Amanhã o jornal vai manchetar isso tudo, tenho certeza!". Enganei-me redondamente. Nada, rigorosamente nada, na primeira página de O Globo remete a esta quarta-feira de cão. Nem o destaque do caderno de cidade é dedicado à série de sinistros.

O lapso editorial – chamemos assim – do único jornal de alcance nacional sediado na cidade lembra a postura desatenta que sempre marcou a cobertura dos casos de violência na periferia de São Paulo pelos dois grandes jornais paulistas (Folha e Estadão). Estes sempre me pareceram muito mais ligados nas trocas de tiros do Complexo do Alemão do que nas chacinas do Capão Redondo. Talvez por uma questão meramente editorial, talvez por motivações político-empresariais, a imprensa sempre entrou muito mais pesado na roleta-russa da violência urbana do Rio do que na de São Paulo.

Não sei o que pode ter realmente motivado essa súbita e inesperada tirada de pé na cobertura de mais um capítulo do caos social que nos aflige, do Leblon ao Engenhão. Uma pista pode estar nas próprias páginas do jornal da família Marinho – do qual sou assinante já faz mais de década: o destaque dado ao apoio do presidente americano Barack Obama à candidatura de Chicago para as Olimpíadas de 2016 foi bem maior que qualquer caso de violência ocorrido ontem. E o Rio está nessa disputa (com reais chances de ganhar), todos nós sabemos.

Seria esse um caso em que o jornalismo opta pela omissão na abordagem dos fatos na sua real dimensão em prol da busca por algo redentor para o coletivo?

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Sobre belezas e indisciplinas, por Seu Jorge

O simpático Seu Jorge é o que se pode chamar, à primeira vista, de um típico cidadão do Rio.

Cara de carioca, estilo de carioca, jeitão de carioca, adentrou no cenário musical carioca nos anos 90 em um grupo chamado... Farofa Carioca! Daí em diante sua carreira deslanchou e, já em voo solo, gravou discos respeitados no rol da chamada World Music, além de fazer boas participações em filmes estrangeiros e nacionais – o seu Mané Galinha em "Cidade de Deus" é um dos maiores acertos da excepcional produção de Fernando Meirelles. Recentemente, Seu Jorge ganhou ares de ídolo da MPB, ao gravar com Ana Carolina e colocar músicas em novelas e nas rádios de todo o país.

Sem dúvida, uma elogiável e merecida trajetória de sucesso, de um cara que tem a cara do típico trabalhador brasileiro.

Tudo isso colocado e exposto, digo que Seu Jorge, lamentavelmente, não sabe nada de Rio de Janeiro. Como tantos outros, artistas ou não, ele vê na cidade a cruz que o impediu de progredir na vida com a devida antecedência, limitando-o enquanto ser socialmente produtivo e sonegando-o a chance de se tornar o grande homem que hoje é.

Tiro essas conclusões baseado numa declaração fortuita dada por ele ao Globo, em reportagem publicada na última sexta-feira. Ao comentar sobre a opção por fazer de São Paulo sua morada há cerca de seis anos, ele me sai com a seguinte definição daquilo que se pode chamar de "típico carioca (segundo Seu Jorge, grife-se)":

- São Paulo me educou. O Rio não te convida à disciplina. Andar de bermuda, sem camisa, chinelo... No Rio, o pouco que eu tinha era bom. A cidade me inspira a pegar um violão, não a fazer um CNPJ. Viu o Obina? Emagreceu, voltou a marcar...

É claro, como é que eu nunca pensei nisso antes? Para o povinho indolente de chinelo e bermuda que vive nessa cidade desgraçadamente bonita, capaz de se refestelar sob qualquer céu azul e lançar às favas os compromissos do dia a dia, a única solução é se mandar para São Paulo! Fácil, não? Basta alugar um conjugado de frente para a Marginal Pinheiros, tomar quatros ônibus por dia que lhe consumam pelo menos 1/3 do seu tempo útil, curtir aquele belo visual cinza chumbo e pronto!, sua vida haverá de melhorar. Seu Jorge garante!

Numa boa: ainda que ele não tenha tido a intenção deliberada de taxar isso ou aquilo do que quer que fosse, o que saiu na primeira página do Segundo Caderno de O Globo na última sexta-feira foi uma infeliz visão simplista e redutora de quem mora por aqui e não se deixa levar pela indisciplina. Enquanto ralador contumaz, eu simplesmente repudio essas insinuações recorrentes de que o Rio e o seu povo pagam por suas bênçãos e que o carioca é exclusivamente aquele vagabundo preguiçoso metido a ixperrrto. Minha indignação cresce de forma considerável quando esse tipo de retrato vem justamente de quem carrega o Carioca Way of Life como produto de marketing para concepção de uma persona artística.

Peguemos exemplos – e não são poucos – de paulistas, mineiros, baianos, gaúchos, pernambucanos e outros de tantos lugares diferentes que fizeram o caminho inverso: vieram ganhar a vida no balneário e conseguiram se estabelecer por aqui, em meio a mares e montanhas paradisíacas.

Tony Ramos – para ficar na área artística – nasceu em São Paulo, torce para o São Paulo Futebol Clube e se tornou carioca desde o final dos anos 1970, quando assinou contrato com a TV Globo. Nunca vi, em todos esses anos, uma só palavra capciosa dele em relação a sua terra natal por ela não ter lhe dado a oportunidade de ser o astro nacional que acabou se tornando no Rio. Até porque seria algo de nível avançado de imbecilidade. Tony Ramos fatalmente seria o grande ator que provou ser nesses anos todos em quaisquer outras cidades, bonitas ou não, que tivessem a infraestrutura que tem a Rede Globo.

Por outro lado, me parece igualmente errôneo atribuir sucesso ou fracasso pessoal a quem quer que seja simplesmente ao chão onde se pisa. Se Seu Jorge não conseguiu ser no Rio de Janeiro o profissional comprometido e aplicado que passou a ser em São Paulo é por culpa exclusivamente sua, não da praia ou da cervejinha gelada que refrescam os pobres mortais que por aqui sobrevivem.

Já ouvi esse papo de "a culpa é que o Rio de Janeiro continua lindo..." outras vezes, em ocasiões diversas. No caso do futebol, também citado por Seu Jorge, é comum dizer que a decadência dos nossos clubes é motivada pela eterna sensação de férias permanentes que o Rio provoca nos craques de fora que vêm jogar aqui. Discordo! Coloque do outro lado da Via Dutra as toupeiras que dirigem (sic) os times cariocas e aposto que em muito pouco tempo os gigantes paulistas convalescerão do mesmo mal que apequena os times do Rio. O que me faz crer, de novo, que pouco importa o cenário que emoldura a paisagem.

Com efeito, metrópoles tão complexas e difusas como Rio e São Paulo são compostas por todo tipo de gente, da melhor e da pior espécie. E entre tantas coisas legais que conglomerados urbanos como esses oferecem está justamente a geração em grande escala de inúmeras oportunidades, seja no campo profissional, pessoal, social, emocional... É bom saber que um cara que ralou por tanto tempo, de chinelo, bermuda, pouco dinheiro no bolso e muitos sons na cabeça, tenha se dado tão bem na vida. E para mim tanto faz o local onde se deu o insight para a mudança de rumo. O que me deixa triste é saber que as raízes históricas que o fizeram compor tão bem essa figuraça do bom carioca sejam hoje em dia, para ele próprio, um rascunho mal-compreendido da realidade.

Queria poder encontrar com Seu Jorge num dia desses e, depois da ralação do trabalho, brindar com ele um copo de cerveja no Arpoador, de bermuda e chinelo. Sei não, mas acho que eu conseguiria fazê-lo mudar de idéia em relação aos seus conterrâneos...