Imagine a cena: milhares de jovens com sangue de rebeldia no rosto, com bandeiras e armas brancas em punho, marchando em bloco em largas avenidas em direção a soldados munidos de cassetetes e escudos. Tudo desenhado para um embate de força e de ideais entre revolucionários e reacionários. Tensão. De repente, um dos jovens puxa uma canção proibida pelo governo local, no intuito de incitar ainda mais seus pares contra a frente militar. Portanto um megafone, ele entoa, num cântico bradado pela rouca voz juvenil:
"Amanhã de manhã
Vou pedir o café pra nos dois
Te fazer um carinho e depois
Te envolver em meus braços..."
A piada me veio à cabeça nesta quarta-feira, quando um fato insólito tornou-se público. O governo da Argentina divulgou uma lista com 150 canções proibidas no país durante os anos de chumbo, e o mundo então descobriu que algumas das maravilhosas pérolas de amor produzidas por Roberto Carlos ao longo da década de 70 eram vistas com maus olhos pelos comandantes vizinhos. As canções de Roberto que ficaram impedidas de tocar na terra do tango durante os anos negros foram "Seu Corpo", "O Progresso", "Os Seus Botões", "Ilegal, Imoral e Engorda" e "Café da Manhã". Eric Clapton, Rod Stewart e Donna Summer (sim, aquela da disco music que cantava "So lets dance!") também não podiam ser ouvidos nas ruas de Palermo e adjacências.
A revelação só reforça a tese – cada vez mais irrefutável – de que toda ditadura, em sua essência, é estúpida nos seus princípios, meios e fins. Nesse caso recém-descoberto, os generais portenhos conseguiam enxergar perigo, ou ameaça, ou rebeldia, ou resistência... nas imagens lascivas eternizadas pelo Rei.
Fico imaginando um sensor trajado de farda e quepe escutando numa sala versos como "No seu corpo é que eu encontro / Depois do amor o descanso / E essa paz infinita...". O cara devia ter intuído:
- Hummm... Então quer dizer que, depois de transar, ele se deita na mulher e fica nessa paz infinita, não é? Mas e se os dois começarem a tramar alguma coisa naquela pasmaceira toda? E se for uma suruba, aí vão ser vários pervertidos tramando juntos! Não, muito perigoso. Proíbe!
No Brasil, as canções românticas de Roberto e Erasmo eram vistas com desdém pelos militares, muito pelo fato de os dois, Roberto em especial, nunca terem sido atores políticos atuantes naquele período. Por outro lado, a grande maioria dos protagonistas da cena musical nesses embates com o governo era cercada e vigiada a cada gravação. É engraçado ver como os militares eram inábeis tanto de um lado quanto de outro. Ao darem de ombros para a "alienação" cantada por Roberto, mensagens de protesto ("Tudo em volta está deserto, tudo certo / Tudo certo como dois e dois são cinco") não tão sutis assim eram ignoradas. Na outra ponta, os próprios alvos recorrentes da censura conseguiam, vez ou outra, mandar suas letras para quem quisesse entender. "Cálice", de Chico e Gil, seja talvez o melhor exemplo disso.
Na lista de músicas de Roberto Carlos vetadas pelo governo autoritário argentino, pode-se dizer que algumas coisas até podem caber num enquadramento proibitivo, se pensarmos com a cabeça de quem quer achar pelo em ovo. Quando um cara qualquer se dá conta de que, vivendo condenado a fazer o que quer, todas as suas escolhas são consideradas ilegais, imorais ou pouco saudáveis, não é difícil ver aí um pessoa cerceada por determinações vindas de cima para baixo. Isso, chegando aos olhos mais atentos da censura, pode ser enquadrado numa crítica ao sistema.
Mas e no caso de "Café da Manhã", o que diabos pode haver de subversivo ali? É só pegar a letra da música para constatar que aquilo é puro deleite de quem acabou ter uma tórrida noite de sexo, sem se importar com nada do que lembre ditadura, movimento armado ou clandestinidade. O cara só estava feliz porque trepou com a mulher, e bem!
Uma dúvida parece sobressair dessa revelação histórica: ou os milicos hermanos são muito mais pudicos do que os nossos ou são mais burros mesmo. Particularmente, aposto nas duas coisas.
Um comentário:
"Com a burrice até os deuses lutam em vão".
Friedrich von Schiller
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