segunda-feira, 12 de abril de 2010

Dacca-Bumba, non stop

Zeca Camargo é um sujeito de sorte. Boa parte do seu ano é gasto remuneradamente ao redor do mundo fazendo matérias para o Fantástico. Se na maioria das vezes as pautas vão desde o processo de confecção de sarongues havaianos até a diversidade da fauna marinha das Bahamas, na última das suas viagens Zeca se prestou a realizar um ótimo registro jornalístico.

A série "Megacidades" enfatiza, com boa narrativa, as particularidades, os problemas e as políticas públicas (ou a falta delas) das principais megalópoles do mundo, sempre traçando um paralelo com a nossa maior cidade, São Paulo. Excluindo Tóquio e Nova York, todos os centros urbanos visitados pelo apresentador do Fantástico estão situados em países em desenvolvimento ou pobres, o que acentua questões muito próximas a nós, brasileiros.

Neste último domingo, Zeca aportou em Dacca, capital e maior cidade de Bangladesh, país miserável do sudeste asiático que só teve a sua independência declarada nos anos 1970.

Concentrada na parte antiga da metrópole, onde as condições de insalubridade atingem níveis extremos, a reportagem flagra milhares de pessoas (sobre)vivendo em meio à podridão de um rio transformado em esgoto público, onde homens costumam se banhar à beira de uma massa firme de detritos. Nas ruas, a imundice é tamanha que impressiona até mesmo quem está acostumado com o dia-a-dia das favelas brasileiras. Tudo é degradado, a começar pela vida humana.

Já no fim da matéria, uma pesquisadora brasileira que mora há dois anos e meio em Dacca é entrevistada. Perguntada sobre o que mais lhe chamou a atenção no inevitável choque cultural ao chegar à capital de Bangladesh, ela aponta o lixo como o maior problema. Abundante em todas as partes, os resíduos compõem um cenário comum naquele cotidiano, onde todos parecem conviver de maneira amigável com a sujeira. A pesquisadora complementa: "É uma coisa diferente, principalmente para nós, brasileiros".

Imediatamente me lembrei do Morro do Bumba, da sua tragédia, das suas vítimas, dos desalojados e do seu imenso lixão surgido de uma hora para outra. Será mesmo que a nossa realidade é tão diferente da de Bangladesh e de sua capital deteriorada, assim como de seus moradores ultra-carentes?

Quando digo nossa realidade, é claro que não estou me referindo à porção "classe média/elite", dotada de serviços essenciais como esgoto tratado, asfaltamento (ainda que esburacado) e construções minimamente seguras. Falo da parte pobre, das favelas sem acesso a nada disso, erguidas sob a omissão do poder público em locais de alto risco, com ritmo de crescimento chinês e índices de desenvolvimento africanos. Falo especificamente do Morro do Bumba, que de aterro sanitário infestado de urubus e crianças descalças se transforma, em poucos anos, em "comunidade" – conforme reza a cartilha do politicamente correto de hoje em dia.

Os anos a fio de descaso e cumplicidade dos governos locais com a favelização dos morros e encostas respondem por esse processo de urbanização do lixão do Bumba. Ao mesmo tempo, a mitificação da chamada cultura da favela, que reveste de legalidade o que é desvio de gestão, impede que se discuta com a ação e o rigor necessários assuntos tratados como tabus, entre os quais a remoção da população carente de locais impróprios. O povo do Morro do Bumba que foi soterrado não merecia pagar essa conta tão alta, assim como pagaram outras centenas de vítimas em todo o estado e os milhares de sobreviventes de mais uma tragédia urbana anunciada, que tem na natureza o menor dos culpados.

Talvez a pesquisadora brasileira residente em Dacca tenha se surpreendido ao tomar conhecimento das circunstâncias que levaram ao fatídico desabamento em Niterói. Talvez tenha se surpreendido ao saber que no Brasil, país que pretende chegar em pouco tempo ao grupo dos cinco maiores do mundo e que abrigará os dois maiores eventos do planeta em sequência, uma "comunidade" inteira tenha se constituído e crescido sobre um aterro sanitário sem qualquer tipo de tratamento.

As realidades social e urbana do Brasil e de Bangladesh, mesmo distantes e com níveis de complexidade muito diferentes, guardam no lixo um triste paralelo. A cidade de Dacca e o Morro do Bumba nunca foram tão próximos.

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