quarta-feira, 14 de abril de 2010

O que faz de alguém um campeão?


Prometo que volto ao assunto pela última vez.

Mas antes de encerrar esse papo definitivamente, lanço uma indagação: “clubismos” e paixões à parte, o que faz de alguém um campeão de fato?

A concessão de uma taça, diferente daquela que foi entregue ao vencedor no fim de uma disputa?

A emissão de um parecer, anos e anos mais tarde??

A validação de um julgamento de tapetão – repito: de tapetão???

Uma estrela bordada na camisa, uma menção neste ou naquele jornal, revista ou TV????

Bom, não sou esportista (já fui tempos atrás), mas conservo carga suficiente de sensatez para afirmar que nada disso faz de alguém um campeão de fato.

O que faz verdadeiramente de alguém um campeão é a conquista efetiva de um objetivo, seja ele qual for.

No caso do futebol, é ganhar dos seus adversários na bola até o término do confronto final.

Jogando bola de verdade, sem chororôs ou apelações fora do campo de jogo.

Basta somente ganhar no campo. Simples e difícil assim.

Dito isso, vale lembrar o seguinte:

O Flamengo disputou em 1987 um campeonato nacional contra os 15 maiores times do país – e SÓ entre eles, como previa o regulamento inicial e que depois veio a ser deturpado.

Parêntese: por ironia do destino, o Flamengo foi o único voto vencido na discussão sobre a formulação do modelo de disputa, mas respeitou a decisão da ampla maioria e entrou na competição cumprindo o regulamento previamente acordado.

Quatro meses depois, a consumação da ironia: após passar pelo Atlético-MG na semifinal e pelo Internacional na final, o Flamengo ganhava o campeonato.

Terminado o último jogo, naquele 13 de dezembro no Maracanã, o capitão do time vencedor (Zico) recebe de Octávio Pinto Guimarães, então presidente da CBF, a taça de campeão.

Estava encerrada a Copa União de 1987 na sua divisão de elite – refiro-me aqui não ao lero-lero de bolinhas e pareceres carimbados, mas ao jogo de campo, disputado com times, estádios e torcidas.

É por isso que não há taça ou papel timbrado no mundo que anule o gol marcado por Bebeto aos 16 minutos do 1° tempo, após jogada coletiva de Renato, Jorginho, Ailton, Zinho e Andrade.

Decisões de Justiça jamais terão o poder de retirar conquistas logradas dentro de campo, por mais que se queiram forjar campeões dentro de gabinetes.

Desculpem a encheção, mas falo de algo que me é caro não apenas por ser flamenguista, mas especialmente por ter sido um dos 90.000 presentes ao Maracanã na grande final e ter visto, pela primeira vez ao vivo, a conquista de um título pelo meu clube de coração.

Essa emoção – que, como vocês percebem, permanece viva e forte em mim – a CBF jamais entregará em forma de taça ao São Paulo, ao Sport (que sequer disputou a competição) ou a quem quer que seja.

Porque aquele campeonato nacional de 1987, disputado com 16 times, dois grupos, jogos duplos de semifinais e de finais, aquele campeonato foi ganho, sim, pelo Clube de Regatas do Flamengo.

Vida que segue.

Saudações Rubro-Negras

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Dacca-Bumba, non stop

Zeca Camargo é um sujeito de sorte. Boa parte do seu ano é gasto remuneradamente ao redor do mundo fazendo matérias para o Fantástico. Se na maioria das vezes as pautas vão desde o processo de confecção de sarongues havaianos até a diversidade da fauna marinha das Bahamas, na última das suas viagens Zeca se prestou a realizar um ótimo registro jornalístico.

A série "Megacidades" enfatiza, com boa narrativa, as particularidades, os problemas e as políticas públicas (ou a falta delas) das principais megalópoles do mundo, sempre traçando um paralelo com a nossa maior cidade, São Paulo. Excluindo Tóquio e Nova York, todos os centros urbanos visitados pelo apresentador do Fantástico estão situados em países em desenvolvimento ou pobres, o que acentua questões muito próximas a nós, brasileiros.

Neste último domingo, Zeca aportou em Dacca, capital e maior cidade de Bangladesh, país miserável do sudeste asiático que só teve a sua independência declarada nos anos 1970.

Concentrada na parte antiga da metrópole, onde as condições de insalubridade atingem níveis extremos, a reportagem flagra milhares de pessoas (sobre)vivendo em meio à podridão de um rio transformado em esgoto público, onde homens costumam se banhar à beira de uma massa firme de detritos. Nas ruas, a imundice é tamanha que impressiona até mesmo quem está acostumado com o dia-a-dia das favelas brasileiras. Tudo é degradado, a começar pela vida humana.

Já no fim da matéria, uma pesquisadora brasileira que mora há dois anos e meio em Dacca é entrevistada. Perguntada sobre o que mais lhe chamou a atenção no inevitável choque cultural ao chegar à capital de Bangladesh, ela aponta o lixo como o maior problema. Abundante em todas as partes, os resíduos compõem um cenário comum naquele cotidiano, onde todos parecem conviver de maneira amigável com a sujeira. A pesquisadora complementa: "É uma coisa diferente, principalmente para nós, brasileiros".

Imediatamente me lembrei do Morro do Bumba, da sua tragédia, das suas vítimas, dos desalojados e do seu imenso lixão surgido de uma hora para outra. Será mesmo que a nossa realidade é tão diferente da de Bangladesh e de sua capital deteriorada, assim como de seus moradores ultra-carentes?

Quando digo nossa realidade, é claro que não estou me referindo à porção "classe média/elite", dotada de serviços essenciais como esgoto tratado, asfaltamento (ainda que esburacado) e construções minimamente seguras. Falo da parte pobre, das favelas sem acesso a nada disso, erguidas sob a omissão do poder público em locais de alto risco, com ritmo de crescimento chinês e índices de desenvolvimento africanos. Falo especificamente do Morro do Bumba, que de aterro sanitário infestado de urubus e crianças descalças se transforma, em poucos anos, em "comunidade" – conforme reza a cartilha do politicamente correto de hoje em dia.

Os anos a fio de descaso e cumplicidade dos governos locais com a favelização dos morros e encostas respondem por esse processo de urbanização do lixão do Bumba. Ao mesmo tempo, a mitificação da chamada cultura da favela, que reveste de legalidade o que é desvio de gestão, impede que se discuta com a ação e o rigor necessários assuntos tratados como tabus, entre os quais a remoção da população carente de locais impróprios. O povo do Morro do Bumba que foi soterrado não merecia pagar essa conta tão alta, assim como pagaram outras centenas de vítimas em todo o estado e os milhares de sobreviventes de mais uma tragédia urbana anunciada, que tem na natureza o menor dos culpados.

Talvez a pesquisadora brasileira residente em Dacca tenha se surpreendido ao tomar conhecimento das circunstâncias que levaram ao fatídico desabamento em Niterói. Talvez tenha se surpreendido ao saber que no Brasil, país que pretende chegar em pouco tempo ao grupo dos cinco maiores do mundo e que abrigará os dois maiores eventos do planeta em sequência, uma "comunidade" inteira tenha se constituído e crescido sobre um aterro sanitário sem qualquer tipo de tratamento.

As realidades social e urbana do Brasil e de Bangladesh, mesmo distantes e com níveis de complexidade muito diferentes, guardam no lixo um triste paralelo. A cidade de Dacca e o Morro do Bumba nunca foram tão próximos.