terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Baby, you can drive my car. Ou não.

Nessa última quinta-feira, ainda sob os efeitos do périplo momesco carioca (pausa: o carnaval de rua do Rio, que há dez anos estava morto para a vida, ressuscitou de uma forma linda, autêntica e espontânea. Uma coisa que só o carioca, ou quem tem a alma de um, sabe fazer. Parabéns, povo!), bem, voltando: na quinta-feira me desloquei a Angra dos Reis a fim de descansar um pouco antes do início real do ano útil. Como não gosto muito daquela estrada Rio-Santos, cheia de curvas sinuosas e meio traiçoeiras, pensei em algo que pudesse escutar e me fazer relaxar nas quase duas horas de chão. Lembrei, por acaso, que nunca havia escutado um CD dos Beatles no meu carro. Isso, para um beatlequasemaníaco como eu, era algo surpreendente.

Resolvi fazer o teste das ruas e levar para o carro duas coletâneas dos Fab Four, cada uma com dois CDs (refiro-me àquelas com as fotos de capa iguais, uma de embalagem vermelha e outra azul). Só clássicos reunidos: da fase iê-iê-iê às viagens indianas, os disquinhos percorrem tudo do bom e do melhor da maior banda de todos os tempos. "Chance de erro", pensei, "zero!". Só que na hora a coisa não funcionou. Eu ali, no volante, preocupado com radares e ultrapassagens, ouvindo as músicas como se elas estivessem abafadas, em volume baixo (embora estivessem em alto e bom som). Não havia peso. O primeiro CD não durou nem 10 minutos rodando no CD player e voltou direto para caixa pelas mãos da minha mulher, que tratou de sintonizar o rádio numa estação bem popular. Não lembro se era pagode ou Beyoncé que tocava.

Cheguei em Angra, mas continuei encucado com aquele inesperado engulho que Strawberry Fields Forever provocou-me dentro do automóvel. "Seria eu um reles beatlemaníaco fake?", me veio à mente tal provocação. Hoje, quatro dias depois, vi que o meu gosto pelos Beatles permanece aquecido, e minha atração pelas inúmeras boas canções idem. O problema não estava no som, mas no ambiente. Vi ali que The Beatles, para mim, não pode servir nunca de apetrecho para momentos prosaico-entediantes como dirigir um carro numa viagem de fim de semana. Aquilo é música clássica, ora essa! Merece todo um ritual de apreciação e devoção, tal qual é conferido às peças de Bach e Vivaldi numa sala de concertos.

A relação de reverência perante a obra criada por Lennon & McCartney, Harrison e Star se aflorou de forma profunda e definitiva depois que adquiri, no ano passado, a caixa remasterizada com toda a obra do quarteto. Era como se um mosaico desconhecido se abrisse sob os meus ouvidos, ampliando em muitas potências as percepções da música produzida por rapazes ingleses absolutamente geniais nas suas diferenças de estilo – o que congrega disparidades em conceitos musicais, filosóficos, poéticos e políticos. Conhecia muito pouco deles, e passei a conhecer menos ainda após a compra da coleção. E foi justamente esse encontro com a minha ignorância que me fez criar um ritual: esperar um momento de tranquilidade em casa, sem agitações ou atropelos, para só então abrir a urna sagrada e me debruçar sobre tão extenso e intenso universo sonoro. Algo que num bom home theater tem o seu valor redobrado.

Desta forma, cadenciada, serena, mas atenta às variações de acordes e harmonias, venho entrando aos poucos no gigantesco mundo músico-cultural dos Beatles. Quando coloquei às compilações rubra e celeste (ambas não remasterizadas, o que faz uma diferença...) no aparelho de som do carro, era como se esse encanto respeitoso e prazeroso, no qual ainda me encontro plenamente envolvido, se quebrasse. Temo que, após a aquisição da mega-caixa de CDs (são 16 mais um DVD), eu tenha ficado refém de um maneirismo meio rococó, algo com o um TOC do bem. Não sei se chegarei aos limites do radicalismo afeito aos mais puritanos, mas sei que os clássicos têm que ser respeitados. Após aquele bizarro estranhamento ocorrido no meu carro, percebi que não dá mais para ouvir Something e buzinar para uma Kombi ao mesmo tempo. Cada um na sua.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

A preguiça jornalística me irrita, mesmo num sábado de carnaval

Hoje é dia 13 de fevereiro, sábado de carnaval. Já é noite, eu estou levemente alcoolizado, mas, ainda assim, estou agora intrigado com algo que não me diz respeito. Isso não faz o menor sentido, pois era hora de eu estar em alguma rua ou avenida tratando de permanecer em níveis alcoólicos ainda maiores. Mas dane-se o álcool, eu quero mesmo é expor minha indignação inútil a quem quer que passe por aqui, seja agora ou na quarta-feira de cinzas.

Indignado estou com a preguiça e a indolência que se apossam das pessoas que defendem o jornalismo nos dias de hoje. Ainda que um jornalista não tenha obrigação de ser especialista em tudo, ele tem o deve moral de se resguardar no momento em que faz determinadas assertivas. O resguardo, neste caso, se traduz em apuração. Em disposição em checar dados, números, valores, ordens de grandeza. Note que não estou falando em confrontar opiniões, em pesar a opinião de um contra a de outro. O que falo aqui é de algo absolutamente objetivo.

Se você entrevista um cantor e ele lhe diz, com todos os dentes que tem na boca, que seu último álbum alcançou a vendagem de 50 milhões de cópias numa única semana apenas no Brasil, o jornalista tem o dever, assim que chegar à redação, de levantar se o dado tem o algum fundamento. Caso tenha esse trabalho, será fácil identificar que a informação do cantor não passa de pura cascata, pois o maior vendedor de discos da história da música brasileira (Roberto Carlos) vendeu, em 50 anos de carreira, algo próximo a 100 milhões de cópias. Como alguém pode apresentar metade desse desempenho em apenas uma semana, com um único trabalho?

Digo isso porque, passando o olho nesta noite de folia pelo noticiário de carnaval da internet, vi uma reportagem do portal jornalístico de maior audiência do país dando conta que o bloco Galo da Madrugada, o principal do carnaval do Recife, atraiu neste sábado um contingente de 1,5 milhão de pessoas. Não há, na matéria, qualquer referência quanto à fonte que baseia esse cálculo, nem mesmo se foi uma conta feita no olhômetro de algum responsável pela segurança do evento. Nada. Há apenas a afirmação curta e grossa: "cerca de 1,5 milhão de pessoas". Tudo bem.

Tudo bem coisíssima nenhuma! Caso a criatura que passou a nota para a redação (repórter), ou a que transcreveu a notícia (redator), ou mesmo a que aprovou o texto antes de publicá-lo (editor), tivesse o trabalho "hercúleo" de ir ao site do IBGE, veria que a população da capital pernambucana tem, segundo estimativas populacionais aferidas em 2008, pouco mais de um milhão e meio de habitantes. Cacete, como é possível isso? Se a informação do portal, por um assombro da natureza, estiver correta, significa dizer que TODOS OS SERES HUMANOS (literalmente) que habitam a cidade do Recife se deslocaram para três ou quatro quarteirões da cidade a fim de acompanhar um único bloco de carnaval.

Ou seja, se uma mulher, naquele momento, estivesse prestes a dar a luz, teria que esperar um obstetra da cidade voltar da farra do Galo, onde todas as outras pessoas localizadas na mesma cidade (obstetras ou não) também estariam. Isso se a própria mulher prenha não estivesse também saltitando no frevo recifense. Pode? Não, é claro. E não adianta vir com a tese de que o carnaval do Recife atrai seus milhares de turistas nesta época do ano, porque nem mesmo uma leva de 500 mil forasteiros (num chute otimista) seria suficiente para bancar uma informação como a que circula hoje em inúmeros sites do país. Supondo que Recife tenha abarcado realmente meio milhão de turistas ao mesmo tempo no seu carnaval e que todos eles tenham se deslocado para o Galo da Madrugada, seria preciso que 2/3 da população local - incluindo idosos, crianças, deficientes e inválidos - também tenham optado por dançar o frevo atrás do famoso bloco. Isto, sob quaisquer circunstâncias ou pontos de vista, é absolutamente impossível.

Por que é tão difícil para jornalistas checar informações que parecem tão estranhas à primeira vista? Será mesmo só preguiça, vacilo profissional? Ou haveria algum interesse por trás de números inflados, projeções irreais, estimativas inchadas? Será que é impossível para um jornalista se dar conta que não há chance de todos os habitantes de uma cidade, seja ela uma metrópole ou um vilarejo, se aglomerarem num único espaço, por um mesmo motivo? Estariam eles levemente alcoolizados como eu?